Realizou-se neste fim de semana (dias 8 e 9) a tradicional festa de S. Martinho de Maçores. Apesar do dia de preceito ser o 11 de Novembro, os organizadores resolveram antecipá-la por calhar em dia de semana (também aqui a tradição a ceder aos ritmos dos novos tempos…)
Continuou a fazer-se a ancestral “procissão” com o caldeiro cheio de vinho, pelas ruas da aldeia, com acompanhamento do gaiteiro vindo das terras de Miranda, e o magusto colectivo nas Eiras. A animação nocturna ficou a cargo do impagável Quim Barreiros (que já aqui tinha actuado há poucos anos) e de um conjunto da região, isto além do programa religioso.
Mas, aproveitando o tema, será bom recordarmos excertos de um texto do nosso saudoso mestre Padre Joaquim M. Rebelo, incluído nas Actas de um congresso intitulado: “A festa popular em Trás-os-Montes”, realizado em Novembro de 1993 (a publicação é de 1995). Começando pelo princípio, aqui vai:
“Resumo biográfico de S. Martinho
S. Martinho nasceu na Panónia (Áustria, Hungria?), cerca do ano 316, de pais pagãos. Depois de aos 18 anos receber o baptismo, renunciar à carreira militar e ter viajado pelo Oriente, onde se iniciou na vida monástica, fez, por algum tempo, vida de ermitão.
Fundou alguns mosteiros mas o mais famoso foi o de Ligugé (França) onde levou vida monástica sob a direcção de Santo Hilário.
Foi depois ordenado sacerdote e mais tarde eleito bispo de Tours.
Pregou o Evangelho pelos campos da Gália numa linha de extirpar os restos de paganismo, a superstição e a ignorância do povo e foi durante muitos séculos o santo mais popular da Europa Ocidental pela nobreza de carácter, pela sua bondade (a capa de S. Martinho…), humildade, etc..
Morreu no ano de 397.
A sua memória litúrgica é a 11 de Novembro.”
Ou seja, na sua biografia nada o relaciona com o vinho. Aliás, o padroeiro dos vinhedos do Douro, não é S. Martinho, mas sim Santa Marta (que, ao que conste, também não era nenhuma “borrachona”!...).
A associação de S. Martinho ao vinho parece derivar apenas do facto de o ciclo da fermentação e apuramento do mosto, transmutado em Vinho, se consumar por volta da data consagrada ao referido santo (a vida agrícola regulava-se pelo calendário a que o Cristianismo associou os seus santos mártires e festas litúrgicas, normalmente sobrepostas às festas pagãs pré-cristãs).
Assim, quanto ao S. Martinho, foi ainda o Pe. Rebelo quem recolheu os seguintes ditos populares: “Pelo S. Martinho, todo o mosto é bom vinho”; “No dia de S. Martinho (11/11) prova o vinho, mata o porco e põe-te de mal com o vizinho”; “No dia de S. Martinho (11/11), lume, castanhas e vinho”.
Mas, voltando à festa de S. Martinho de Maçores, devolvamos a palavra ao Pe. Rebelo, que a descreveu a partir de uma recolha que fez em 1990:
“(…) A festa mais (típica, semi-pagã) do concelho de Torre de Moncorvo, embora, ultimamente, esteja a ser adulterada com a introdução dos conjuntos musicais, é a do S. Martinho, freguesia de Maçores, que se celebra a 10 e 11 de Novembro (…).
‘É uma festa que nada se assemelha a das outras vizinhas’, diz-me um velhote a viver intensamente a festa.
‘Há três coisas que não faltam na festa – acrescenta o idoso – o vinho na caldeira, as castanhas e o gaiteiro’.
‘É uma festa muito alegre, até se diz que é a festa dos bêbados’.
No dia 10 chega o gaiteiro, ‘cuja chegada é anunciada com o estralejar dos foguetes’.
Depois o gaiteiro é ‘sorteado pelas mordomas para ver quem irá dar o alojamento ao mesmo’.
Logo que chega, o gaiteiro, acompanhado por ‘alguns homens de diversos níveis etários’, dá volta à povoação, não se calando até à hora do jantar (cear).
À noite, há o arraial com um ‘conjunto’ e a arrematação de prendas oferecidas pelas moças.
Dia 11 é o grande dia. Da parte da manhã, o gaiteiro percorre novamente as ruas tocando e os acompanhantes cantando e dançando.
De tarde há a missa e a procissão acompanhada pelo gaiteiro que toca canções religiosas, como o ‘Queremos Deus’, ‘Santos e Arcanjos’…etc.’
A seguir, para estes camponeses chega a parte mais importante da festa – o magusto, ‘porque, segundo o tal velhote, se o S. Martinho fosse vivo, era quem mais cantava e dançava’.
O magusto comunitário iniciou-se por volta das dezasseis horas. Antes, porém, o gaiteiro percorreu, novamente as ruas da aldeia acompanhado de muitos homens e rapazes com uma caldeira enfiada numa vara de cerca de dois metros de comprimento segurada por dois jovens, e na qual foi deitado o vinho oferecido pelos proprietários da terra.
A caldeira, que leva, talvez, mais de
E todos os estranhos que neste dia aparecem em Maçores são obrigados a beber de bruços na caldeira. Se não beberem mete-se-lhe a cabeça dentro da caldeira.
O cortejo encaminha-se para o lugar das Eiras, onde o magusto se vai realizar.
Durante esta ‘procissão’, que o gaiteiro e o povo fizeram pelas ruas da aldeia, antes de chegarem ao lugar do magusto, cantam quadras como estas:
Ai eu hei-de morrer na adega,
Ai o tonel seja o caixão
Ai o vinho seja a mortalha
Hei-de morrer com o copo na mão.
Minha sogra morreu ontem,
O diabo vá com ela,
Deixou-me as chaves da adega
E o vinho bebeu-o ela (…)
O cortejo chegou finalmente ao largo das Eiras onde se vai fazer o magusto. A palha espalha-se no largo e as castanhas, em grande quantidade, são lançadas nessa palha à qual se ateia fogo. (ver foto acima)
Os foguetes estralejam, as castanhas removidas por homens, com compridas varas, estoiram aqui e ali provocando a hilaridade que contagia velhos e novos.
As pessoas vão aproveitando, não há fronteiras sociais, para comerem as que lhes parecem melhores, deixando as glórias ou piadas (castanhas encruadas) e as queimadas.
(…) Entretanto, os rapazes, e não só, aproveitam o fim do magusto para enfarruscar sobretudo as raparigas, que lhes retribuem na mesma moeda ‘ficando negros como carvoeiros’. Entre uma gargalhada, uma castanha, um gole de vinho e uma enfarruscadela à parceira ou parceiro do lado, acaba o magusto.
Regresso à aldeia. E a festa continua pela noite dentro com o gaiteiro resfolegando e a malta, já meio enrouquecida, cantando”.
Desta feita, em 2008, já no século XXI, a festa perdura e ainda foi mais ou menos assim. Terminando com o Quim a debitar: “e o cavalo do teu pai, e a égua da tua mãe, e o porco do teu irmão, "…etc. para já não falar da sua mais romântica canção (diz ele): "quero cheirar o teu bacalhau, Maria!..."
Para o ano há mais!
Texto: N. Campos e Padre J.M.Rebelo, artigo citado (em itálico).
Fotografias: de autoria de Filipe Camelo, tiradas nos dias 8 e 9 de Novembro de 2008.
Nota1: Entretanto, pode visitar o fórum de Maçores (é preciso registo prévio): http://www.macores.pt.vu/
Nota2: ainda sobre este tema, pode ainda visualizar algumas excelentes fotos da festa de 2006, da autoria do nosso colaborador António Basaloco, em: http://www.antoniobasaloco.org/gentes97.htm