- Ó avó, não se esqueça da minha encomenda!
- Não me esqueço, não te aflijas! Só se não os houver… – respondia-lhe a avó pela milésima vez.
O dia de Feira requeria aos habitantes das Quintas uma jornada pensada de véspera e, mormente, muitas horas de preparação para o bom sucesso de tal evento. A Serra apenas olhava para o Vale, tentava-o e espreguiçava-se na sua inércia. Ela só convidava com as suas curvas proeminentes, depois quem quisesse que se esforçasse para descobrir os mistérios que vedava. Do outro lado, demasiado ao fundo para as patas das bestas e dos homens, só bem no seu cume se antevia a azáfama dos camponeses e do seu gado.
A subida pelos lados da olga do Paralta, por entre os soberbos castanheiros a ladearem o carreiro, tinha-lhes tirado o fôlego a eles e às animálias, ou a ambos. Não seria certamente apenas pelo ar puro da alva, mas pelo esforço de uma boa hora de caminhada. A partir do alto do Reboredo tudo era muito mais simples! “Pra baixo águas correm e todos os santos ajudam”, expressão que saía amiudadamente da boca da avó, não sei se para se animar, se para insinuar que ir à Feira a pé ainda custava muito mais do que aos homens escarranchados na cavalgadura e às mulheres sentadas de lado, num equilíbrio periclitante de saias. De pulmões cheios do bafejo da Serra e olhos postos na torre da igreja, o pensamento desviava-se para o apregoar da Corredoura. O caminho de terra batida da floresta, com manchas de cores variegadas na folhagem do arvoredo, refreava-lhes a descida e quase embatia no imponente Asilo, onde se resguardavam da aragem e dos lobos as freiras, o capelão e as meninas. Quando aqui se apeavam dos burros, machos, éguas, mulas ou cavalos e os deixavam com o rabeiro comprido, dependurado de ramo forte ou tronco rijo, e a regozijarem-se no fenasco, os iminentes negociantes largavam definitivamente as arreatas. Depois, matavam a sede nas grichas do fontanário de Santo António e refrescavam as frontes, se o calor já apertasse, como faziam lá na fonte lajeada ou poço bravio da sua terra. Levavam ao lado deles, pelo seu pé, os leitõezinhos que haviam transportado no aconchego dos cestos vindimeiros, à moda de cangalhas, e bem travados no seu baloiçar pela meia-lua do arrocho. Cada um fazia a sua entrada triunfal e ocupava o lugar que lhe estava destinado. Afinal era um fórum comercial com regras e demarcações: porcos e bestas de carga arrumados de costas voltadas para a escola primária, mesmo em frente da capela do Mártir São Sebastião e a toda a extensão do lado oposto do largo espraiavam-se ovelhas e cabras e também alguns tendeiros e jogadores de caricas, que fariam agora companhia ao busto do Embaixador A. M. Janeira. Mas havia, inclusivamente, quem não largasse os transportadores dos fardos, de quinteiros e do vivo, entenda-se, e se atrevesse, por ruas mais esconsas, como as do actual Museu do Ferro, a penetrar acompanhado aquele espaço comunal. Junto à feira dos porcos, o Porteiro camarário recebia as cavalgaduras, alguns tostões pelo zelo que punha na sua guarda e na manutenção da ordem entre a bicharada quadrúpede de grande porte, quantas vezes só conseguida à custas dum potente e nodoso varapau. Ao gado ovino e caprino estava-lhe inteiramente destinado o estrelato, deslocando-se sempre a pé pela imensa passadeira áspera desde que de manhãzinha os donos lhes tinham descerrado as cortes . Sem outro aparato que não fosse o balido manso e o suave tilintar dos chocalhos, as ovelhas caminhavam pachorrentamente por entre aquela mansidão harmoniosa, que se misturava na massa dos feirantes, em ondas lanudas, no Inverno, ou desnudadas e singelas, por alturas da Primavera e do Verão. Destacava-se tão somente daquela amálgama o berreiro esquivo das cabras ou a correria desesperada das crias à procura do leite das progenitoras. A Tasca das Trevonas alojava-se sobranceira às paredes da casa da aula e distribuía, ao longo do dia, peixes fritos ou sardinhas assadas em moletes e pataniscas de bacalhau, tudo regado a bom vinho para afrouxar a rouquidão que o pregão contínuo e o pó do grande afã avivavam. Para refrescar não faltava ainda o pucarinho aguadeiro da Cachopa, de cântaro ao quadril a bambolear gotas por chamariz entre a multidão.
Na altura em que se deu o acontecimento de que aqui falamos, os tempos já eram outros. Naquela manhã, a avó sumiu-se no cordão estreito de terra castanho-avermelhada que conduzia Valente acima. Alcançou o topo das Minas, desceu o desfiladeiro e prendeu o Ruço ao tronco do castanheiro, a uns bons metros da estrada nacional do Carvalhal. Sacudiu o pó dos sapatos com uma giesta e apanhou a camioneta da carreira. Os anos já não lhe permitiam as duas horas de ida e as duas horas de volta da expedição, quando não vendia a mercadoria que outrora levava. E isso não raras vezes acontecera! Com os porquinhos assim a grunhir dentro dos cabazes pela exposição ao frio do longo do dia, limitava-se a seguir a andadura do burro, também mais lenta pelo cansaço acumulado. Refastelada no seu assento, a sua preocupação era, presentemente, outra. Tudo aquilo lhe vinha como se fossem meros “Farrapos de Memória”.
Tinha prometido à netinha que lhe levaria o relógio. Antes que tivesse tempo de congeminar o plano para mercar o que desejava, já o veículo penetrava um dos estreitíssimos acessos que conduziam à praça. Apeou-se ao cheiro das buganvílias, muito enroscadas ao sol e aos muros do Castelo, e dirigiu-se ao local da feira. Ali não havia empedrado e a proximidade do chão de terra ganhava-lhe a sua confiança telúrica. Afoita e bem decidida, quis saber se o dono da primeira tenda tinha a mercadoria que ela procurava.
- Ó senhor homem, tem relógios mentirosos?
- Relógios mentirosos?! – inquiriu ele muito espantado. Os meus relógios não mentem, dão sempre horas certas, desde que não lhe falte a corda. Ó mulher, eu não vendo gato por lebre!...
- Não se zangue! É para a minha neta, para brincar! – respondeu de cara alegre e de riso escancarado nos lábios.
- Ah!, desses!
E o feirante, sorrateiro, foi entrando na conversa da velhota.
- Tinha. Até tinha muitos, mas veio aí o senhor da farmácia e levou-os por junto.
Num repente, tudo se iluminara. Mal agradeceu e se despediu, subiu de novo a rua íngreme, infiltrou-se por uma das artérias da praça, rumou em frente e cortou à direita. Estava às portas do velho edifício da botica. Entrou e, como acontece normalmente em dias como este, o estabelecimento estava à pinha. Teve que esperar pacientemente, até que a sua vez de ser aviada também chegou.
- Diga lá o que precisa de nós!
Muitas pessoas já tinham sido atendidas, mas o vaivém era contínuo.
- Disseram-me que têm relógios mentirosos. Quero um!
A empregada, pasmada, não acertava no que havia de dizer, até que por fim lá balbuciou:
- Ó Srª Candinha, quem lhe disse tal coisa não foi a sério!
Na sua inocência, a aproximá-la de novo da infância, deu uma risada e atirou num tom de caçoada íntima:
- Bem me admirei que vendessem relógios na farmácia, mas saiba que é para a minha netinha. Bem vê, não lhe posso aparecer de mãos abanar…
A empregada limitou-se a finalizar com um “tenho muita pena” e continuou na senda da sua avultada clientela. Por sua vez, em forma de desforra, a velhota saiu decidida na perseguição da sua busca, resmungando para os seus botões, aliviada, que ela não precisava para nada daquelas mixórdias medicinais.
Com este intuito, volveu à confusão do mercado. Passou de novo pelo mesmo vendedor ambulante e, sem dar a mão à palmatória, foi percorrendo com o olhar quantas barracas a abarrotar de mercadorias encontrou montadas e parou naquela que mais lhe pareceu, ao primeiro impacto, interessar – uma pequena bancada de brinquedos. Por entre ferrinhos de engomar de latão reluzente, com tampos de plástico colorido e aferrolhados por galinhos de cristas romanas, utensílios de cozinha e de regadores de crivos perfilados, o seu olhar negro, brilhante e inquiridor fixou-se em sete ou oito daqueles relogiozinhos multicolores, onde balançavam dois grandes ponteiros no mostrador redondo, igualmente garridos, e no qual se percebiam os desenhos indistintos de uns bonecos. Também tinha o tal roquete para dar corda e acertar as agulhas de que a neta lhe falara. A bracelete azul cintilante seria o contraste perfeito com a alvura do pequeno bracito, onde esta permaneceria noite e dia. Maravilhada e sem se questionar acerca do preço, coisa invulgar para a sua natureza de negociante de talho, de fruta, de feijões e tudo o que pudesse dar lucro, pagou e abalou. Ainda deu uma olhadela à procura de merino preto para fazer um avental novo, mas nem para isso teve paciência! Sem hesitações, regressou outra vez à praça, foi à Repartição pagar a contribuição dos prédios e voltou a montar na camioneta. O Ruço esperava-a coberto de poeira, por se ter espojado depois que escarvou a terra. Fora esta a maneira mais eficaz que encontrara para enxotar as moscas e os moscardos que lhe sugavam o sangue. Àquela hora adiantada do dia o préstimo do rabo e as abanadelas das orelhas teriam sido insuficientes e, como tal, recorreu ao instinto, rebolando-se no solo arado. Mais protegido do mosquedo, melhor consentiu o peso da proprietária que o conduziu, carreiro acima e monte abaixo, ao descanso e ao punhado de trigo da manjedoura.
- Traz-me o que lhe encomendei, avó?
- Não. Afinal, não encontrei o que tu querias…
- Está a brincar comigo!? Eu sei muito bem que mo trouxe!Os montes cobriam-se de sombras, a penumbra começava a habituar-se ao vento fresco da noite, que já soprava forte, e as duas sentaram-se ao lar na companhia dos estalidos das cascas dos pinhos. A avó mostrou-lhe o relógio mentiroso quando o último rebentamento do revestimento húmido da lenha se soltou no ar e originou um estrondo magnífico.
Autora: Isabel Fidalgo Mateus
Imagem: postal ilustrado dos anos 70 do séc. XX (edição da Livraria Clássica, Torre de Moncorvo)