Repórter não sou, mas, porque ontem estive num museu vivo, um museu que tenta preservar não só o espólio arquitectónico e cultural da região, mas também e a solidariedade da alma transmontana, apetece-me escrever sobre ela.
Ontem, foi o melhor dia da partidela, era o último, o dia das filhoses, o dia em que se terminava a safra anual e dava direito a ceia reforçada.
Ontem, fiz “serão” em casa do Ti Chico Sá, estava cheia, toda a vizinhança apareceu. Ontem voltei à minha meninice, aos anos setenta, voltei a ouvir aquele martelar constante: tac… tac… taaac… voltei a escutar as conversas de adulto que nem percebia. Soaram em mim vozes que, num linguarejar de outros tempos, pediam, com insistência, a luz da candeia para catar o grão que saltou e se esconde no meio do cascabulho. Ontem, maldisse a vida quando bati involuntariamente no indicador, ontem, entorpeceram-se-me novamente as pernas pelo longo tempo de imobilidade e voltaram-me a arder os olhos pela fumaça das cascas que tardavam a acender.
Ontem, não sei porquê, voltei aos gambozinos, vi-me de fachoqueiro na mão, afouto, noite dentro, à hora dos lobisomens, a arrepiar-me nas encruzilhadas, percorrer o empedrado irregular e húmido da Rua da Fonte-do-Prado.
Ontem vi os burros, atados pela arreata no cimo do amendoal, a rabejar incessantemente, a escarvar no chão, como que a pedir socorro do ataque continuado do regimento de moscas que, apoiados por uma bataria de moscardos artilheiros, voejavam em seu redor. Ontem vi muitas almas varonis ao longo da riba das Arcas. Iam de amendoeira em amendoeira, atentos às irregularidades do terreno, sempre a ver onde punham os pés e a varejar para o chão o fruto já bem seco. Vi as mãos calejadas do mulherio que apanhava desembaraçadamente amêndoa a amêndoa, no meio dos cardos, e despejava às mancheias nas cestas de vime asadas, mudadas à medida que se avançava encosta acima, com muito cuidado, não fossem esbarrondar-se e obrigar a nova e forçada apanha.
25.10.2009
Por: António Sá Gué
Fotos de: Camané Ricardo e de Rui Leonardo/PARM
Ainda sobre a VI Partidela da Amêndoa realizada no Museu do Ferro, ver: http://parm-moncorvo.blogspot.com/2009/10/vi-partidela-tradicional-da-amendoa_26.html
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
A partidela de amêndoa
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
"Partidela" da Amêndoa
"- Ai quanto me custa morrer, ó Xica Neiva!
- Olha que Deus não é de brinquedos senão às vezes dava castigos, não achas?
- O que nós fazíamos quando éramos solteiros!
- Não te recordas daquelas noites de inverno, quando íamos ajudar a partir a amêndoa para a casa da tia Arminda Fanega?
- Primeiro cantávamos a vozes, ao som do martelar, o canto do Cravo Rijado.
- As costas e os pés estavam frios, mas os corações até deitavam fogo.
- Olha que tu tinhas mesmo uma voz de respeito, mas eu, também, não ficava atrás.
- Vamos tentar cantar uns versos desse cântico? Recordar é viver, home. Ora vamos lá ver se ainda acertamos.
E os nossos idosos, numa voz ainda firme, repassada de saudades, lembrando aquelas noites frias e o pum, pum, pum do partir da amêndoa e, as conversas chistosas do grupo das partideiras, começaram a cantar:
Fala-me, ó cravo rijado,
Fala-me fora da rama,
Fala-me sem cobardia, ó ai,
quem é cobardo não ama.
Quem é cobardo não ama,
Quem ama não é cobardo,
Fala-me ó meu amorzinho, ó ai,
Fala-me ó cravo rijado.
Fala-me aonde me vires,
Não te escondas de ninguém,
Eu na fama já sou tua, ó ai,
Por esse mundo além.
Acabada a cantiga, o ti Cara Linda atalhou logo:
- E quando tu dizias: Ó Cara Linda, ensina lá a doutrina a estas moças casadouras, senão o senhor padre não as casa.
- E eu então começava: Raparigas, ouvam lá o catecismo d'hoje" [continua]
in: "A Terra Transmontana e Alto Duriense. Notas etnográficas", por Joaquim Manuel Rebelo (Padre Rebelo), ed. Câmara Municipal de Torre de Moncorvo e Associação Cultural de Torre de Moncorvo, 1995.
Foto: Padre Rebelo? Legenda: "Partidela da Amêndoa" no Peredo dos Castelhanos.
terça-feira, 20 de outubro de 2009
VI Partidela Tradicional da Amêndoa, no Museu do Ferro
Realiza-se no próximo dia 24 de Outubro (sábado), a partir das 15;30h, a 6ª Partidela Tradicional de Amêndoa, organizada pelo Museu do Ferro & da Região de Moncorvo.
Como já informámos em edições anteriores, a “partição” ou “partida” da amêndoa, consistia na reunião das famílias, vizinhos e amigos, para, ao serão, durante as noites frias de Outono ou Inverno, se “entreterem” a quebrar a casca lenhosa das amêndoas, a fim de venderem o produto em grão, pois assim era mais bem pago pelos negociantes de frutos secos. Era um momento de trabalho, mas também de confraternização e de amena cavaqueira.
Este sistema de entreajuda, um pouco na linha do comunitarismo transmontano, era sobretudo usado pelos pequenos e médios proprietários. Os grandes proprietários, por seu lado, chamavam gente à jeira, normalmente mulheres, para executarem esse trabalho, o qual era pago consoante os alqueires que enchiam, completamente a transbordar.
É preciso recordar que boa parte do concelho de Torre de Moncorvo se situa na chamada Terra Quente Transmontana, com um microclima mediterrânico, onde se dão bem a vinha, a oliveira e a amendoeira. Esta última cultura, que é também responsável pelo cartaz turístico da Amendoeira em Flor, tem conhecido uma certa regressão nas últimas décadas, razão pela qual as “partidas” da amêndoa deixaram de se verificar. Já antes disso, as máquinas britadeiras tinham começado a substituir a mão humana. No entanto, as memórias persistem, e o Museu do Ferro, querendo recuperar estas tradições e, simultaneamente, desenvolver uma certa “museologia de proximidade”, envolvendo pessoas de todas as idades e de diversas proveniências (habitantes locais e visitantes de outras paragens) volta a reeditar esta actividade, que já é um cartaz habitual, nesta época do ano, sempre com assinalável êxito!
Aceitam-se inscrições até ao fim do dia 22 de Outubro, para o tlf. 279252724.