Esclarecidos os equívocos, em que não há inocentes, mas também não há culpados, por isso mesmo se chamam equívocos, regresso ao blogue com memórias de José Cardoso Pires sobre cuja morte já passaram 10 anos (exactamente em 26 de Outubro).
Às vezes diz-se: celebram-se 10 anos sobre a morte. Como se lembrar a morte fosse motivo de celebração.
Há anos, já não me recordo do ano, o presidente da Câmara, Aires Ferreira, pediu-me se conseguia algum escritor que pudesse vir a Moncorvo falar do 25 de Abril
Lembrei-me de José Cardoso Pires, então o nosso mais nobelizável (não fosse a força espanhola, via Pilar, a apostar em Saramago), por quem um mantive até à sua morte, uma profunda, muito profunda amizade. Creio que este sentimento era recíproco. Tenho provas para tal.
O José Cardoso Pires já tinha um compromisso para uma conferência na Alemanha. Cancelou o compromisso para vir a Moncorvo. Um carro da Câmara foi buscá-lo a Lisboa, e à Edite, a sua mulher. Eu vim no meu próprio carro.
A conferência numa parte, a menor, do Cine-Teatro, foi no hall que dá para o primeiro balcão. Cardoso Pires falou sobre a Censura, antes e depois do 25 de Abril. Na assistência, escassíssima, estava um informador da Pide. Só mais tarde lho disse porque temia a sua reacção se o soubesse no decorrer da conferência. Nem hoje direi o nome. Paz ou guerra à sua alma que a misericórdia também tem limites.
Acabámos a noite no Noitibó (o primeiro bar-discoteca que houve em Moncorvo), que então era do Miranda e tinha o Aires como empregado. O Aires colocou uma Martin's de 20 anos (o tal Martins judeu de Trancoso que fugiu para a pérfida Albion) no balcão e estava proibido pelo Miranda de permitir que o copo do escritor estivesse vazio.
Mais tarde o Cardoso Pires perguntar-me-ia se o Miranda não se importava que um dia fosse personagem de uma ficção sua.
Já regressou muito tarde à Residencial Passarinho. A Edite já dormia. Eis senão quando se ouvem uma guitarradas. Tinha começado uma serenata ao Cardoso Pires. À viola (e disse guitarradas porque violadas na noite poderia ter outra leitura), o engenheiro Sendas (já falecido) e nos trinados, em voz aguda, o Artur Paiva, bancário, e o comandante da GNR, natural de Parada e cujo nome, de momento, esqueci. Para ele estava proibido o balão.
O Cardoso Pires veio à janela agradecer e a Edite já não conseguiu dormir até de manhã.
Várias vezes o Cardoso Pires contava este episódio. Dia 26, vai ser homenageado, com a presença do Presidente da República, em Vila de Rei, o concelho da sua aldeia, o Peso.
Um dos maiores romancistas do último século veio a Moncorvo e pouca gente notou. L'air du temps. Ai! se fosse o Tony Carreira...