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terça-feira, 24 de novembro de 2009

Trás-os-Montes - por Rentes de Carvalho

Vale da Ribeira das Arcas, entre os Estevais e Carviçais. Estevas (cistus ladanifer) em primeiro plano (foto de Marisa Carloto, 2009)

«Trás-os-Montes. Perto da raia. Terras de pedra, de pão, calcinadas, oliveiras que os anos retorceram, pinheiros sombrios, fios de água que correm nos vales e não acodem à seca.
Abutres circulando no ar, vindos ao cheiro da ovelha morta que a aragem espalhou, vagarosos, à espera que o rebanho se afaste, chocalhos fúnebres, montes sem alegria, o fumo pairando sobre a aldeia, sete da tarde, sol bárbaro, o carro de bois chia na ladeira, lamento que se espalha, canção triste.
A torre quadrangular e escura da igreja, a casa do Capitão - com sentina - alvejando, a nossa derreada na encosta, pintada de amarelo.

Cumeada sobranceira à ribª. do Medal (foto de Marisa Carloto, 2009)

Ninguém sabe que voltei e enquanto aqui estou escondido entre os pinhos, animal do monte, é o passado que desliza, sardinhas que a minha avó fritou na tarde em que o tio Serafim subiu à figueira e eu atravessei o riacho a vau, gritando, certo que morria no meio metro de fundo e que a correnteza me levaria até ao Sabor, perdido, nu, repelente como o afogado que tinha visto no Douro, uma corda passada ao pescoço, preso à barca, azulado.

À esquerda o cemitério, os sobreiros em volta, caminho da Figueireda, andanças de menino. Meu pai plantou pessegueiros e laranjeiras que não dão, culpa das pedras. Mais longe o Cabeço. O nosso tio António morreu lá com uma ferida ruim. Ameaçava de navalha quando lhe chamavam ti Maricas.
Cheiro a estevas queimadas no forno, pão centeio ainda quente, bolas de azeite, mulheres enfarinhadas, cargas de lenha.
Domingo. Burras à espera do ferrador. O macho do Peleiro é enorme, aliviam-no da carga, dão-lhe sopas de vinho num alguidar e as galinhas, sem medo, depenicam também.
À porta da taberna Zé Cigano, o Zé do senhor João e o Fidalguinho tocam guitarra, maravilha, música que nunca mais hei-de ouvir, pasmo de criança».

RENTES DE CARVALHO, "Anotações", in O rebate. Edição Círculo de Leitores, 1973.

Rentes de Carvalho, conversando em Vila Real

Rentes de Carvalho (foto de João Pinto V. Costa)
Rentes de Carvalho foi o mais recente convidado do ciclo Conversas no Museu da Vila Velha, em Vila Real, que se realizou no passado dia 21 de Novembro. Este encontro com o escritor foi promovido pelo Museu da Vila Velha em coordenação com a Direcção Regional do Norte do Ministério da Cultura.
Professor Rentes de Carvalho, entre a Drª. Helena Gil e Dr. João Luís, da D.R. Cultura do Norte (foto de João Pinto V. Costa)

Rentes de Carvalho, embora nascido em Vila Nova de Gaia tem raízes trasmontanas em Estevais de Mogadouro, sendo um "cliente assíduo" de Torre de Moncorvo. Aliás, os seus avoengos mais remotos seriam oriundos de Mós e das Quintas do Cabeço, entre os concelhos de Moncorvo e Mogadouro. Sua mãe, a Srª. Ernestina, faleceu há poucos anos no Lar de Carviçais, tendo sido uma das personagens centrais do seu célebre romance "Ernestina".
Ainda nos anos 40, José Rentes de Carvalho saíu de Portugal por motivos políticos e, depois de passar pelo Brasil, Nova Iorque e Paris, acabaria por se fixar na Holanda, em 1956, onde trabalhou inicialmente no departamento comercial da embaixada brasileira. No Brasil deixou colaboração diversa em jornais como o Correio Paulistano, O Estado de S. Paulo, O Globo e revista O Cruzeiro. Já na Holanda licenciou-se na Universidade de Amsterdão, com uma tese sobre "O povo na obra de Raúl Brandão". Ingressou posteriormente como professor na mesma Universidade (1964) aí ficando a leccionar Literatura Portuguesa até 1988.
No âmbito da sua actividade universitária e como escritor, na Holanda, deu a conhecer vários autores clássicos da literatura portuguesa (p. ex. Eça de Queiroz e Raúl Brandão), e aí escreveu obras que foram "best-sellers", tais como os livros Com os Holandeses (1ª. ed. de 1972, com sucessivas reedições até hoje) e Ernestina (1ª. ed. holandesa de 1988 e várias reedições), para já não falar em Portugal: um guia para amigos (Portugal, een gids voor vrieden, ed. De Arbeiderspers, 1ª. ed. 1989), livro que obteve múltiplas edições em Holandês, mas que nunca teve versão portuguesa. Não raro aparecem na nossa região alguns turistas holandeses com este guia na mão.
Depois de ter passado por ser um "ilustre desconhecido" em Portugal (apesar de ser um escritor "best-seller" na Holanda), parece que finalmente o nosso conterrâneo Rentes de Carvalho começa a ser (re)conhecido pela imprensa de referência intelectual das urbes tugas: em 6.02.2009 o suplemento do Público "Ípsilon" recenseou a primeira edição portuguesa de Com os holandeses, sob a chancela da Quetzal (havia uma impressão em português, mas feita na Holanda); depois, em 18 de Abril do corrente ano o suplemento "Actual" do Expresso dedicou-lhe duas páginas, sob o título: "Um meridional nos Países Baixos - história de um best-seller português na Holanda que Portugal até hoje desconheceu"; ainda em Abril, "descobriu-o" a revista Ler dedicando-lhe também quatro páginas. Todavia, já antes, outra imprensa mais marginal o houvera "descoberto", como o Primeiro de Janeiro (Porto), sobretudo pela mão de Gonçalves Guimarães, um dos obreiros da Confraria Queirosiana (sedeada no Solar dos Condes de Resende, V.N. de Gaia) de que Rentes também faz parte.

Aspecto do auditório durante a sessão (foto de João Pinto V. Costa)

De uma ironia cortante, tanto em alguns dos seus escritos como na oralidade, em que um sentido de humor cáustico cativa e provoca o público, assim foi Rentes de Carvalho no passado sábado em Vila Real. Depois da apresentação efectuada pela Directora Regional da Cultura do Norte, Drª. Helena Gil, e respondendo a uma pergunta do Dr. João Luís Rodrigues sobre a sua vivência entre dois pólos (Holanda e Portugal), Rentes de Carvalho disse que não havia pólos, pois que se definia como um turista, aqui como lá, pois este jornadear fazia parte da sua vida como faz da de todos nós: "sou um turista que veio a esta vida para andar por aqui". Definiu-se depois como um observador: "olho, vejo, observo... e escrevo".
Uma das afirmações (ou provocações) mais polémicas que fez foi a de que gostaria de nascer holandês numa hipotética reencarnação. Isto tudo depois dos defeitos que apontou aos holandeses: hipócritas, sem sentido de humor e com grandes preocupações relativamente ao "politicamente correcto". Um sentimento ambivalente, pois admitiu a sua trasmontaneidade ao afirmar que nunca se conseguiu libertar das suas origens, ou antes, talvez não se tivesse querido libertar. Mais: se se tivesse "libertado", não teria havido um ganho, mas sim uma perda.
Poliglota, começou por dizer que desde criança, ainda em V. N. de Gaia, sendo vizinho da famosa família Cockburn (ligada ao Vinho do Porto), desde cedo aprendeu Inglês; depois teve a fase do Francês, até chegar ao Holandês. Por um certo receio de "perder a língua materna", mais tarde procurou regressar ao Português, língua em que habitualmente escreve: "Eu só funciono bem na escrita em Português", disse.
Referindo-se ao futuro negro das nossas aldeias trasmontanas, disse ironicamente que nem tudo é mau: ficarão como espaços de lazer e de recreio "de uns quantos ricaços que aqui viriam para passear, ou para escrever sobre isto, em passeios de fim de semana".
Sobre a actividade da escrita, e respondendo a mais uma das várias questões que lhe foram postas, considerou que "escrever é um trabalho árduo" e que se sente uma outra pessoa quando escreve, como se o acto de escrita fosse algo exterior a si, admirando-se até, posteriormente, de certas frases escritas, de que não se lembrava de as ter escrito. Dissertou, a propósito, sobre o problema da sinceridade/invenção do autor sobre aquilo que escreve.
Muitas outras questões foram abordadas, num convívio franco e aberto com um dos maiores escritores portugueses da actualidade, que oscila entre o mundo cosmopolita da Europa mais vanguardista (que o enche de perplexidade) e as suas raízes trasmontanas profundas em que procura ser mais um resistente num mundo em extinção. Por isso, num movimento pendular, qual ave de arribação, vai oscilando entre cá e lá, consoante as épocas do ano. Por cá fixa-se na sua tebaida dos Estevais, sendo frequente encontrá-lo, com sua esposa ou amigos holandeses, a almoçar no restaurante Lagar (Torre de Moncorvo), Artur (Carviçais), ou Lareira (Mogadouro).
Ou seja, em terras algo distantes das élites cultas das Lísbias ou dos Portos...
Sobre esta notícia, ver também: http://www.mensageironoticias.pt/noticia/2346

Blog de Rentes de Carvalho: http://tempocontado.blogspot.com/

por: N.Campos e Vasdoal

domingo, 22 de novembro de 2009

ABÍLIO DO NASCIMENTO MARTINS DENGUCHO

Leio:baptizado a 6 de Agosto de 1809,na igreja matriz de Torre de Moncorvo;baptizado a 6 de Junho de1670 na igreja matriz.Duas datas de dois moncorvenses ilustres.Um ,Júlio Máximo de Oliveira Pimentel , Visconde de Villa Maior, presidente da câmara municipal de Lisboa,reitor da univerdidade de Coimbra ,autor de vários livros :”Douro Ilustrado “,”Tratado de Enologia”,”Manual de Viticultura”,etc..,é talvez a maior figura de Moncorvo.O outro é Francisco Botelho de Morais e Vasconcelos ,escritor membro da Real Academia Espanhola.Visito a igreja ,dirigo-me à pia baptismal ,olho e comovo-me a pensar que em Maio de 41 fui aí baptizado.É este sentimento de partilha da “pátria chica” que me invade e me leva às lágrimas .Eu também nasci em Moncorvo . É o orgulho que grita.

Leio numa revista de Macau uma entrevista com o Abílio Dengucho .Ele, o Abílio ,director geral do Banco do Oriente, com a sua assinatura nas notas de Macau ,emitidas pelo Banco Nacional Ultramarino, também é de Moncorvo. Quando termino , regresso à pia baptismal.Os outros foram ilustres dos séculos XVII,XVIII e XIX;o Abílio vive entre nós ,almoça no Jardim,janta no Lagar ,cruzamos com ele na rua. Abílio do Nascimento Martins Dengucho é uma das grandes figuras do séc.XX da nossa pátria moncorvense.

Lelo Brito




sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Nove Poemas de Novembro

III

Vens descobrir o lugar dos mortos, onde recomeça
a memória. Contas o espaço e tu não tens lugar.
Acendem as velas, numa vila a morrer é negócio vivo.
Olhas e são rostos de noite sem lágrimas os que secam os troncos
dos ciprestes. O jazigo tem grades, ferrugem e duas fotografias.
Olhas o lugar que só hoje descobriste. É Novembro e Deus
não o sabe. Os vivos passeiam-se entre os mortos
com os carros à porta e os cães procurando osso velho
na terra ressequida. Porque a terra dos mortos é sempre
terra ressequida.

Não vale falar dos últimos dias,
das madrugadas acordadas em mágoa e lágrimas de cansaço.
Vens descobrir que não tens lugar entre os teus mortos.
Um dia alguém recolherá as tuas cinzas e dará nome a um limoeiro.
A fogueira apaga-se, na noite limpa e gelada, com os cães adormecidos.
E os deuses e os gregos e os normandos e demais bárbaros
todos confraternizam neste culto de mortos com requiem
cheirando a cera, com voz de mocho sugando a alma.
A morte é universal e hoje mal vivo vens descobrir o lugar
dos mortos. Não tens lugar quando a morte te habita.

Hoje há teatro - no Celeiro, às 21;30h

JÚLIO DENGUCHO

O influente jornal "Tribuna de Macau" publicou no dia 13 de Novembro de 2009 um extensa entrevista com o nosso conterrâneo Júlio do Nascimento Dengucho. Os assuntos tratados são, naturalmente, as relações entre Portugal e Macau. A entrevista é ilustrada com várias fotos, entre as quais a de uma nota com a assinatura do entrevistado que foi administrador do Banco emissor da moeda que circulava em Macau. Dela retiramos apenas uma curta passagem, que é uma espécie de desabafo. Vejam:

- Raramente intervenho em conversas sobre Macau sem delas sair mal disposto com a ignorância revelada por quem não faz a mínima ideia do que Macau é, do papel que ocupa na nossa história e do que poderia (poder?a) ocupar no nosso futuro. Quanto á actuação das entidades públicas portuguesa, conheço o que vem na imprensa e parece-me muito pouco. Eu julgo saber como Portugal deveria olhar para macau, muito especialmente perante a crise que o mundo atravessa e que não tem afectado tanto a RPC. Mas é sina nossa os políticos de Portugal preocuparem-se mais com problemas paroquiais, com campeonatos de futebol e claro, com a manutenção do poder a qualquer custo.

António Júlio


quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Novos professores, em ronda por detrás da Serra

Na passada semana, tendo em vista dar a conhecer a realidade paisagística, social, económica e patrimonial do concelho de Torre de Moncorvo, a direcção do Agrupamento Vertical de Escolas de Torre de Moncorvo promoveu uma visita guiada aos novos professores que aqui foram colocados.

O itinerário escolhido passou pelo ermitério de N. Senhora da Teixeira (Sequeiros), com passagem por Açoreira, Maçores, Felgueiras, culminando no Felgar, já do lado Norte da Serra, onde foi servida uma merenda tradicional no adro do santuário da Senhora do Amparo.
Aqui ficam algumas imagens desse trajecto:

Aspecto do altar-mor da capela do ermitério de Senhora da Teixeira, em mau estado de conservação e a reclamar obras de restauro urgentes.

Velha porta carcomida com cravelha, talvez um dos motivos mais fotografados na aldeia da Açoreira.

Visita à Açoreira, no largo defronte da capela da Stª. Bárbara


Visita a Felgueiras, próximo do lagar comunitário da cera, onde velhas casas ainda resistem ao avanço do cimento e do betão...


O velho cereeiro de Felgueiras, Sr. Acácio "Fachico" explica o processo de fabrico de velas, na sua oficina ancestral...


Ainda em Felgueiras - uma adega abandonada, com lagar e os pipos ainda no lugar (vazios, claro!... que pena...)
Fotos de N.Campos

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Drª. Lourdes Rocha Girão

Drª. Lourdes Girão recitando um poema, no auditório do Museu do Ferro, em 25.03.2006 (foto de A. Basaloco/Arquivo do Museu)

Se há pessoas que passam pela vida sem que o mundo delas se aperceba, tal não foi, decididamente, o caso da Drª. Lourdes Girão. Médica conceituada, albicastrense por nascimento, veio para Torre de Moncorvo por via do seu casamento com o advogado Dr. Carlos Girão, natural do Felgar. Foi directora do Centro de Saúde local, escreveu e publicou livros (poesia e prosa), cantava o fado de forma exímia e tocante, pintou quadros, teve intervenção política, foi esposa dedicada e mãe extremosa. Mulher lutadora, chegou a vencer a doença, tendo criado uma associação de apoio a doentes de foro oncológico, mas chegou o dia em que o mal foi mais forte. Aconteceu no passado dia 16, tendo-se realizado a última homenagem no dia de ontem, na igreja matriz de Torre de Moncorvo, perante uma numerosa multidão. Fica em perpétuo descanso na aldeia do Felgar, terra de seu marido, a quem endereçamos sentidos pêsames, bem como a seus filhos João e José, e toda a família enlutada.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

SERMÃO DO BOM LADRÃO

Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este género de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non grandis est culpa, cum quis furatus fuerit: juratur enim ut esurientem impleat animam. O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao Inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera (...) Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. - Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: - Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. - Ditosa Grécia, que tinha tal pregador!
Padre António Vieira - Sermão do Bom Ladrão, 1655

"O silêncio das cegonhas" - exposição no Centro de Memória

Foi inaugurada no passado dia 7, no Centro de Memória de Torre de Moncorvo, a exposição fotográfica intitualada "O silêncio das cegonhas", de autoria de Carlos Inácio e Pedro Inácio, numa co-organização da Direcção Regional da Cultura do Norte/Ministério da Cultura e Câmara Municipal de Torre de Moncorvo.

Carlos Inácio (nasceu em Lisboa em 1954, residindo em Peniche) é médico de profissão e dedica-se à fotografia desde 1973. Tem participado em inúmeras exposições individuais e colectivas, com diversos trabalhos publicados em revistas e outras edições culturais, sobre motivos captados em diversas partes do mundo.

Pedro Inácio (n. em Lisboa, 1960, reside em Venda do Pinheiro, Mafra) é um profissional de Museologia, trabalhando no Museu da Àgua (EPAL), sendo vice-presidente da APOM (Associação Port. de Museologia). Iniciou a actividade fotográfica em 1985, muito por influência de seu irmão Carlos Inácio. Desde 2005 tem realizado exposições individuais e colectivas em vários museus e espaços culturais. Tem igualmente trabalhos editados, com vários prémios no seu currículo.

Esta mostra é composta por dezenas de fotografias representando cegonhas em diversos contextos (diversos ninhos em postes, em casas arruinadas, chaminés, etc., ou em pleno voo), em diversas regiões portuguesas, sobretudo no Alentejo.

Registem-se, a propósito, estas palavras de Luís-Cláudio Ribeiro, no folheto de apresentação: "De então regresso ao Sul de agora. Regresso a essa dimensão silenciosa das aves branquejadas, cegonhas portanto (sei que dá doutras cores mas são estas que ecoam na minha planície). E vendo-as, sem piar ou grito aflito, imagino o que não sendo hominídeo para ele caminha, animal sem faringe, protótipo de homem que apenas com o ressoar dos lábios apascentava o medo e chamava pelos seus. É ainda assim a cegonha no seu piar de bico, pois lhe falta o órgão para o som vocal. //É bom que vejamos no restolho, nas chaminés abandonadas e nos postes da civilização, pois embora tímidas carregam a nossa imortalidade".

Esta abordagem parece constituir ainda um apelo ecológico em redor destas simpáticas aves, das quais só as de plumagem negra se podem encontrar no nosso concelho, lá para os barrancos do Sabor. A cegonha branca em Trás-os-Montes parece preferir a zona de Bragança e Miranda do Douro, não se vendo pelos nossos lados.

Ainda pode visitar esta Exposição, até ao dia 27 de Novembro.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

"O relógio mentiroso" - um conto de Isabel Mateus

- Ó avó, não se esqueça da minha encomenda!
- Não me esqueço, não te aflijas! Só se não os houver… – respondia-lhe a avó pela milésima vez.
O dia de Feira requeria aos habitantes das Quintas uma jornada pensada de véspera e, mormente, muitas horas de preparação para o bom sucesso de tal evento. A Serra apenas olhava para o Vale, tentava-o e espreguiçava-se na sua inércia. Ela só convidava com as suas curvas proeminentes, depois quem quisesse que se esforçasse para descobrir os mistérios que vedava. Do outro lado, demasiado ao fundo para as patas das bestas e dos homens, só bem no seu cume se antevia a azáfama dos camponeses e do seu gado.
A subida pelos lados da olga do Paralta, por entre os soberbos castanheiros a ladearem o carreiro, tinha-lhes tirado o fôlego a eles e às animálias, ou a ambos. Não seria certamente apenas pelo ar puro da alva, mas pelo esforço de uma boa hora de caminhada. A partir do alto do Reboredo tudo era muito mais simples! “Pra baixo águas correm e todos os santos ajudam”, expressão que saía amiudadamente da boca da avó, não sei se para se animar, se para insinuar que ir à Feira a pé ainda custava muito mais do que aos homens escarranchados na cavalgadura e às mulheres sentadas de lado, num equilíbrio periclitante de saias. De pulmões cheios do bafejo da Serra e olhos postos na torre da igreja, o pensamento desviava-se para o apregoar da Corredoura. O caminho de terra batida da floresta, com manchas de cores variegadas na folhagem do arvoredo, refreava-lhes a descida e quase embatia no imponente Asilo, onde se resguardavam da aragem e dos lobos as freiras, o capelão e as meninas. Quando aqui se apeavam dos burros, machos, éguas, mulas ou cavalos e os deixavam com o rabeiro comprido, dependurado de ramo forte ou tronco rijo, e a regozijarem-se no fenasco, os iminentes negociantes largavam definitivamente as arreatas. Depois, matavam a sede nas grichas do fontanário de Santo António e refrescavam as frontes, se o calor já apertasse, como faziam lá na fonte lajeada ou poço bravio da sua terra. Levavam ao lado deles, pelo seu pé, os leitõezinhos que haviam transportado no aconchego dos cestos vindimeiros, à moda de cangalhas, e bem travados no seu baloiçar pela meia-lua do arrocho. Cada um fazia a sua entrada triunfal e ocupava o lugar que lhe estava destinado. Afinal era um fórum comercial com regras e demarcações: porcos e bestas de carga arrumados de costas voltadas para a escola primária, mesmo em frente da capela do Mártir São Sebastião e a toda a extensão do lado oposto do largo espraiavam-se ovelhas e cabras e também alguns tendeiros e jogadores de caricas, que fariam agora companhia ao busto do Embaixador A. M. Janeira. Mas havia, inclusivamente, quem não largasse os transportadores dos fardos, de quinteiros e do vivo, entenda-se, e se atrevesse, por ruas mais esconsas, como as do actual Museu do Ferro, a penetrar acompanhado aquele espaço comunal. Junto à feira dos porcos, o Porteiro camarário recebia as cavalgaduras, alguns tostões pelo zelo que punha na sua guarda e na manutenção da ordem entre a bicharada quadrúpede de grande porte, quantas vezes só conseguida à custas dum potente e nodoso varapau. Ao gado ovino e caprino estava-lhe inteiramente destinado o estrelato, deslocando-se sempre a pé pela imensa passadeira áspera desde que de manhãzinha os donos lhes tinham descerrado as cortes . Sem outro aparato que não fosse o balido manso e o suave tilintar dos chocalhos, as ovelhas caminhavam pachorrentamente por entre aquela mansidão harmoniosa, que se misturava na massa dos feirantes, em ondas lanudas, no Inverno, ou desnudadas e singelas, por alturas da Primavera e do Verão. Destacava-se tão somente daquela amálgama o berreiro esquivo das cabras ou a correria desesperada das crias à procura do leite das progenitoras. A Tasca das Trevonas alojava-se sobranceira às paredes da casa da aula e distribuía, ao longo do dia, peixes fritos ou sardinhas assadas em moletes e pataniscas de bacalhau, tudo regado a bom vinho para afrouxar a rouquidão que o pregão contínuo e o pó do grande afã avivavam. Para refrescar não faltava ainda o pucarinho aguadeiro da Cachopa, de cântaro ao quadril a bambolear gotas por chamariz entre a multidão.
Na altura em que se deu o acontecimento de que aqui falamos, os tempos já eram outros. Naquela manhã, a avó sumiu-se no cordão estreito de terra castanho-avermelhada que conduzia Valente acima. Alcançou o topo das Minas, desceu o desfiladeiro e prendeu o Ruço ao tronco do castanheiro, a uns bons metros da estrada nacional do Carvalhal. Sacudiu o pó dos sapatos com uma giesta e apanhou a camioneta da carreira. Os anos já não lhe permitiam as duas horas de ida e as duas horas de volta da expedição, quando não vendia a mercadoria que outrora levava. E isso não raras vezes acontecera! Com os porquinhos assim a grunhir dentro dos cabazes pela exposição ao frio do longo do dia, limitava-se a seguir a andadura do burro, também mais lenta pelo cansaço acumulado. Refastelada no seu assento, a sua preocupação era, presentemente, outra. Tudo aquilo lhe vinha como se fossem meros “Farrapos de Memória”. Tinha prometido à netinha que lhe levaria o relógio. Antes que tivesse tempo de congeminar o plano para mercar o que desejava, já o veículo penetrava um dos estreitíssimos acessos que conduziam à praça. Apeou-se ao cheiro das buganvílias, muito enroscadas ao sol e aos muros do Castelo, e dirigiu-se ao local da feira. Ali não havia empedrado e a proximidade do chão de terra ganhava-lhe a sua confiança telúrica. Afoita e bem decidida, quis saber se o dono da primeira tenda tinha a mercadoria que ela procurava.
- Ó senhor homem, tem relógios mentirosos?
- Relógios mentirosos?! – inquiriu ele muito espantado. Os meus relógios não mentem, dão sempre horas certas, desde que não lhe falte a corda. Ó mulher, eu não vendo gato por lebre!...
- Não se zangue! É para a minha neta, para brincar! – respondeu de cara alegre e de riso escancarado nos lábios.
- Ah!, desses!
E o feirante, sorrateiro, foi entrando na conversa da velhota.
- Tinha. Até tinha muitos, mas veio aí o senhor da farmácia e levou-os por junto.
Num repente, tudo se iluminara. Mal agradeceu e se despediu, subiu de novo a rua íngreme, infiltrou-se por uma das artérias da praça, rumou em frente e cortou à direita. Estava às portas do velho edifício da botica. Entrou e, como acontece normalmente em dias como este, o estabelecimento estava à pinha. Teve que esperar pacientemente, até que a sua vez de ser aviada também chegou.
- Diga lá o que precisa de nós!
Muitas pessoas já tinham sido atendidas, mas o vaivém era contínuo.
- Disseram-me que têm relógios mentirosos. Quero um!
A empregada, pasmada, não acertava no que havia de dizer, até que por fim lá balbuciou:
- Ó Srª Candinha, quem lhe disse tal coisa não foi a sério!
Na sua inocência, a aproximá-la de novo da infância, deu uma risada e atirou num tom de caçoada íntima:
- Bem me admirei que vendessem relógios na farmácia, mas saiba que é para a minha netinha. Bem vê, não lhe posso aparecer de mãos abanar…
A empregada limitou-se a finalizar com um “tenho muita pena” e continuou na senda da sua avultada clientela. Por sua vez, em forma de desforra, a velhota saiu decidida na perseguição da sua busca, resmungando para os seus botões, aliviada, que ela não precisava para nada daquelas mixórdias medicinais.
Com este intuito, volveu à confusão do mercado. Passou de novo pelo mesmo vendedor ambulante e, sem dar a mão à palmatória, foi percorrendo com o olhar quantas barracas a abarrotar de mercadorias encontrou montadas e parou naquela que mais lhe pareceu, ao primeiro impacto, interessar – uma pequena bancada de brinquedos. Por entre ferrinhos de engomar de latão reluzente, com tampos de plástico colorido e aferrolhados por galinhos de cristas romanas, utensílios de cozinha e de regadores de crivos perfilados, o seu olhar negro, brilhante e inquiridor fixou-se em sete ou oito daqueles relogiozinhos multicolores, onde balançavam dois grandes ponteiros no mostrador redondo, igualmente garridos, e no qual se percebiam os desenhos indistintos de uns bonecos. Também tinha o tal roquete para dar corda e acertar as agulhas de que a neta lhe falara. A bracelete azul cintilante seria o contraste perfeito com a alvura do pequeno bracito, onde esta permaneceria noite e dia. Maravilhada e sem se questionar acerca do preço, coisa invulgar para a sua natureza de negociante de talho, de fruta, de feijões e tudo o que pudesse dar lucro, pagou e abalou. Ainda deu uma olhadela à procura de merino preto para fazer um avental novo, mas nem para isso teve paciência! Sem hesitações, regressou outra vez à praça, foi à Repartição pagar a contribuição dos prédios e voltou a montar na camioneta. O Ruço esperava-a coberto de poeira, por se ter espojado depois que escarvou a terra. Fora esta a maneira mais eficaz que encontrara para enxotar as moscas e os moscardos que lhe sugavam o sangue. Àquela hora adiantada do dia o préstimo do rabo e as abanadelas das orelhas teriam sido insuficientes e, como tal, recorreu ao instinto, rebolando-se no solo arado. Mais protegido do mosquedo, melhor consentiu o peso da proprietária que o conduziu, carreiro acima e monte abaixo, ao descanso e ao punhado de trigo da manjedoura.
- Traz-me o que lhe encomendei, avó?
- Não. Afinal, não encontrei o que tu querias…
- Está a brincar comigo!? Eu sei muito bem que mo trouxe!Os montes cobriam-se de sombras, a penumbra começava a habituar-se ao vento fresco da noite, que já soprava forte, e as duas sentaram-se ao lar na companhia dos estalidos das cascas dos pinhos. A avó mostrou-lhe o relógio mentiroso quando o último rebentamento do revestimento húmido da lenha se soltou no ar e originou um estrondo magnífico.

Autora: Isabel Fidalgo Mateus
Imagem: postal ilustrado dos anos 70 do séc. XX (edição da Livraria Clássica, Torre de Moncorvo)

domingo, 15 de novembro de 2009

Gaiteiro

descubro-te o canto entre pedras e céu
trinos e lamentos , gritos e antigos sons
que do fole revivem como guerreiras danças
em passos de pastor sobre a esteva pela alba
gaiteiro da vida que me acordas

invento-te o nome, nesta serra , neste olhar
com tambores e ferrinholas
despertas as aves que voam do rebanho
sobre o meu tempo , numa viagem distante
gaiteiro da vida que me acordas

vejo-te na festa como um rei
por entre fogueiras
celebramos contigo no fole e na palheta
o vinho novo o sonho que renasce
gaiteiro da vida que me acordas


Novembro de 2009

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

S. Martinho de Maçores é neste fim-de-semana!

Aqui fica o cartaz das famosas festas de S. Martinho de Maçores, que terão lugar este fim-de-semana, visto que o dia próprio (11 de Novº.) calhou a meio da semana. Prometem-se muitas castanhas e vinho, alegria e animação!
Ah, e dizem-nos de Maçores que até já lá têm gaiteiro próprio (como sabem alguns o gaiteiro é presença obrigatória nesta festa, desde tempos imemoriais). Para ver, clicar sobre os seguintes endereços electrónicos:
http://www.youtube.com/watch?v=TdRLsL8L61Y
http://www.youtube.com/watch?v=cVV2ut8Hw5k

Para quem nunca lá foi, se quiser ficar com uma ideia, veja aqui como foi a festa do ano passado: http://torredemoncorvoinblog.blogspot.com/2008/11/s-martinho-de-maores.html

E para mais informações, pode espreitar o Fórum dos maçoranos: www.macores.pt.vu (obriga a registo prévio).

Então este fim de semana, não se esqueçam de fazer uma visita a Maçores!

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

"Na intuição do Tempo" - novo livro de António Sá Gué

Um novo livro de autoria do nosso conterrâneo António Sá Gué é apresentado hoje no Porto e amanhã em Valongo, onde reside o autor.
Aqui fica uma sinopse do romance, que gira em torno de uma conversa entre várias personagens, passageiros numa viagem de combóio (certamente pela linha do Douro), cada qual com a sua experiência de vida:
Será possível fazer a síntese de um determinado tempo e percepcionar o futuro? Que movimentos, que ideias nos influenciaram e nos fizeram seguir em determinada direcção? Este é o propósito deste livro, que procura condensar alguns dos movimentos sociais do século XX, materializados em personagens-tipo que interagem dentro do comboio do tempo, um tubo de ensaio onde as personagens exteriorizam os seus pensamentos, ora os verbalizando, ora comentando a paisagem que vai surgindo através da vidraça do imperecível comboio, permanentemente fustigado pela força das intempéries da tecnologia e que o engenheiro Norberto acredita dominar.
Nada acontece por acaso.
Que influência teve nas gerações seguintes a revolução geracional dos anos 60, representada pelo Horácio, um estudante influenciado pelo movimento hippie? Que peso teve a queda do muro de Berlim e a Guerra Fria que o mundo viveu, e que morreu com o Gonzaga, um comunista idealista que ainda acredita na luta do proletariado? Aonde nos conduz o homo pouco sapiens que, embalado pelo chouto do comboio da globalização e do consumismo desenfreado, ainda acredita ser o maquinista e dominar a máquina, travar e acelerar sempre que o desejar, mas, em boa verdade, já não tem os freios para poder orientar essa possante besta que a todos arrasta?
- António Sá Gué

António Sá Gué nasceu em Carviçais (1959), completou o ensino secundário em Torre de Moncorvo e, com 20 anos, alistou-se como voluntário no Exército português. Fez a carreira das armas, acabando por se formar no Instituto Superior Militar, o que o faz ascender ao oficialato. Estreou-se na escrita em 2007 com a publicação do romance As Duas Faces da Moeda (edit. por Papiro Editora), logo seguido de Mimos e contos de Natal (em co-autoria) e Contos dos Montes Ermos (editado por ArtEscrita). Já este ano, por ocasião das comemorações do 25 de Abril, foi apresentado outro livro de sua autoria - Fantasmas de uma revolução - que, de certo modo, prolonga os dramas de As duas faces da moeda.

Na intuição do Tempo são as angústias existenciais do nosso tempo, vivenciadas pelo cidadão comum, e, naturalmente, também pelo autor.

Para saber mais sobre A. Sá Gué, ver: http://antoniosague.blogspot.com/

E amanhã não se esqueça: a apresentação pública do novo livro, a cargo do nosso colega de Blogue Rogério Rodrigues, é na Biblioteca Municipal de Valongo, pelas 21,30h.

Desde já as nossas felicitações ao António Sá Gué e desejo do maior sucesso!

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Recolha de rochas

Esta colheita de cogumelos fez-me recordar uma outra, mas de pedaços de rochas para colocarmos num determinado tabuleiro e depois aprendermos a classificar.

Foi o Dr. Ramiro quem ordenou a recolha, porque a turma era "bem mandadinha", miúdos e miúdas não só da vila, mas de uma dúzia de aldeias em redor, muito aplicados, atiladinhos, etc. etc.

O Dr. Ramiro gostava mesmo da turma e queria que fizéssemos um brilharete no dia em que o Sr. Inspector vinha inspeccionar o Colégio.

No Domingo que se seguiu, na vila e em muitas aldeias, só se via a miudagem de martelo na mão, à cata de encontrar uma pedra fora do vulgar. Eu e mais duas colegas andámos pelas rochas recém-cortadas do que viria a ser o campo da bola de S. Paulo. Tinham uns veios oblíquos com umas cores ocre, vermelho, castanho que achámos uma beleza.

Os cachopos das aldeias todos trouxeram o seu pedaço de rocha. Só um rapaz se esqueceu completamente. Prometeu trazer no dia seguinte.

Então colocámos as pedras no dito tabuleiro, em cima de um papel em que havíamos escrito o nosso nome, o local onde a pedra fora encontrada, a data, e em seguida tínhamos de observar muito bem, cheirar, riscar com a unha, raspar, etc. etc.

Na aula seguinte, o aluno-cabeça-no-ar voltou a esquecer-se . O Dr. Ramiro, muito zangado, ameaçou que o não deixava entrar se não trouxesse o diabo da pedra. Nós todos, debruçados sobre os calhaus, bem cheirávamos, raspávamos, até provávamos para começar a classificar , mas só com a ajuda do professor é que íamos acertando. Repetimos várias vezes e já sabíamos a cantilena de cor e salteada. Podia vir o Sr. Inspector.

E na aula pré-concertada lá estava ele. Entrámos, mas o aluno-cabeça-de-alho-chocho que, mais uma vez se esquecera da pedra, nem se atreveu a entrar. Deu meia volta a correr, regressou uns instantes depois com um paralelipípedo nas mãos que depositou em cima da secretária.

O Dr. Ramiro perdeu a fala de tão furioso que ficou ! Pegou no paralelipípedo, dirigiu-se à janela e zás , atirou-o à rua. O estrondo que fez foi enorme. Uma coisa estranha, de meter medo ! A miudagem estava em pânico, o inspector e o Dr. Ramiro espreitaram ... O pedregulho tinha caído no tejadilho do carro do Sr.Inspector.

E quereis saber quem era o aluno-cabeça-no-ar? Quem havia de ser ? O Urgel Guerra.

Uma jóia de moço que já não está entre nós. Mas ainda ríamos à gargalhada quando, em Mogadouro, recordávamos esse episódio.

Jornada micológica - breve foto-reportagem

Conforme anunciado, realizou-se no passado dia 7 uma jornada micológica pela serra do Roboredo, em redor do caminho velho que vai da capela de Senhora de Fátima (antiga capela de S. João) em direcção ao Calhoal. A actividade, organizada pelo PARM em conjugação com o Museu do Ferro e da Região de Moncorvo, teve como monitor o Engº. Afonso Calheiros.
Apesar de se terem encontrado poucos cogumelos, devido sobretudo à escassez de precipitação, foram observadas algumas espécies representativas, com recolha selectiva, para posterior classificação em gabinete. Este foi o momento final da jornada, após uma apresentação efectuada pelo engº. Afonso, no auditório do Museu.
O tempo bastante fresco e ameaçando chuva, não favoreceu um número maior de participantes, mas os que compareceram revelaram-se "alunos" atentos e não se arrependeram de ter vindo.
Aqui ficam algumas fotos deste evento:

O engº. Afonso dando uma explicação prévia aos participantes.

Momento da procura - o Capuchinho Vermelho não veio, mas mandou alguém...


Ainda se conseguiram avistar algumas "sanchas" (nome científico: "Lactarius deliciosus"). E estes são mesmo deliciosos, podendo ser preparados de diferentes maneiras.

À falta de cogumelos, provaram-se medronhos - aqui um grande medronheiro testemunha a flora autóctone e ancestral.
O passeio micológico também foi pretexto para se conhecer a flora local - aqui um belo pilriteiro.
Entre blocos de hematite (minério de ferro de Moncorvo), dois "roques" (Macrolepiota procera), comestíveis. Serão o "roque e amiga"?

Outro dos objectivos do passeio era o convívio com a Natureza e a sensibilização ambiental para a importância da floresta.Observação e classificação dos cogumelos recolhidos, no auditório do Museu.
Um Boletus edulis, cogumelo comestível que em algumas zonas é conhecido por míscaro.

Cogumelos alucinogénicos: os perigosos Amanita muscaria (os dois à direita), conhecidos por "regalgar" ou "resgalgar".
Um belo ramo de cogumelos, de nome impronunciável: Kuehneromyces mutabilis, que já foi Pholiota mutabilis.
Estes são conhecidos por "pufes" ou "peido de lobo", na linguagem popular. Uma vez secos largam um pó esverdeado, se forem tocados.

Os perigosos Agaricus - classificação genérica.

Para ver algo mais sobre esta actividade: http://parm-moncorvo.blogspot.com/2009/11/ii-passeio-micologico-e-workshop-em.html

(fotos de N.Campos/PARM/MFRM)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Nove poemas de Novembro

A propósito do Dia de Finados

IX

Há rios claros, há povoados abertos mesmo que desertos, há água
que lave esta inquieta vontade de nada? Há cordas que amarrem a alma
ao poste da memória e te obriguem a confessar a tua profunda
amnésia? Há tempo para amar ainda quando o resto é tudo
tão breve? Há olhares que nos procuram quando a cegueira alastra?
E há algum sentido para o sentido que isto tem? Há ruas para andar
por onde andaste, com a soleira das portas cheias de sombras?
Há navegações ocultas de que nem tu suspeitas no último adeus
em que acordaste? Há o Homem por trás da cortina da tua casa
desabitada? Há gritos repartidos pela vontade de gritar, quando calas
o próprio silêncio? Há fontes e nascentes e cavalos e portos
quando a condição de ser te prende? Há canções ao fim do dia? Há
que tempos te procuras e não sabes que só a morte não é Interrogação?!

Pedro Castelhano

domingo, 8 de novembro de 2009

Um poema de juventude de Campos Monteiro

No arquivo da Casa do Rossio, propriedade da família Pinto Félix, guarda-se um precioso poema manuscrito, de autoria de Campos Monteiro, o qual foi publicado há vários anos, no “Mensageiro de Bragança”, pelo nosso saudoso mestre Padre Joaquim Rebelo. O facto de o poema estar assinado apenas como Abílio Monteiro, nome que utilizou nos primeiros escritos, situa-nos cronologicamente nos finais do séc. XIX (anos 90?). Quanto ao lugar onde foi escrito, só pode ser na serra do Roborêdo, pois do alto divisa a vila, como se depreende.
Campos Monteiro vai voltar de novo a este tema da dor perante a hipocrisia e a traição, num outro poema intitulado “Desterrado”, publicado in “Versos fora de moda” (Porto, 1915).

Vista da vila de Torre de Moncorvo, a partir da Quinta das Aveleiras, propriedade da família Pinto Félix.

O vento nos arvoredos
Geme uns íntimos segredos,
N’um confuso murmurar;
E os rouxinóis nas balceiras
Cantam as noites fagueiras
Inundadas de luar.

O doce correr da agoa [sic]
Dá um tom leve de mágua [sic]
À alma ardente dos poetas;
E a villa além, silenciosa,
Oculta-nos, receiosa [sic],
Os rostos das Julietas.

Sinto um feliz bem-estar
Quando alcanço este lugar,
Tão cheio de solidão.
Só aqui, longe do Homem,
Me não seguem e consomem
A Malvadez e a Traição.

Abílio Monteiro

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Memórias

Uma reflexão outonal. Apenas

Memórias do regresso a casa

Pedro Castelhano

Passei a tarde de hoje a arrumar papéis ( o hoje é tão circunstancial que podia ser ontem ou anteontem). Sou como um camponês (acho mesmo que sou um camponês falhado), avaro em tudo o que são recordações.
E que inutilidades nós guardamos!
De ano a ano é salutar a selecção no excesso, na esperança, desesperada de tão inútil, que aqueles papéis um dia nos vão a ser úteis, quando sabemos, no fundo de nós, que nem sequer vão ser lidos.
Depois, temos poemas de que já não nos lembramos ( e todos nós enquanto jovens sonhámos ser poetas), diários tão datados que sorrimos de conceitos e de tantos julgamentos errados – quer para o bem quer para o mal – para os quais hoje dificilmente encontramos justificação. E só pelo que escrevemos temos a noção de como o tempo passou. E lembramo-nos das camisas que deixámos de usar, dos lugares que já não frequentamos, dos amigos que partiram ou de que nos despedimos, ainda hoje sem saber porquê.
O Tempo é a nossa maior ilusão.
Recolho livros, papéis e memórias neste regresso a casa. Livros que há muito não folheava e que hoje, ao follhear, falam de mim, do que então fui, nos sublinhados e nas notas, livros medidores do meu conhecimento. Trago-os comigo para casa. Alguém um dia os há-de ler, depois de uma releitura minha, nostálgica da juventude em que foram lidos pela primeira vez, mais com paixão do que reflexão. Ficam bem em estantes improvisadas. São eles a fotografia da minha juventude.
E os muitos cadernos de explosões verbais, de sentimentos de circunstância mas que eu achava profundos, da arrogância e soberba de me julgar incompreendido, como se o mundo não me merecesse, todo este trânsito de memória me reduz a um ser frágil e vulnerabilizado neste regresso a casa, como filho pródigo sem acolhimento mas com as cautelas de pescador de barco ainda ancorado.
Recolho livros para meter na mala do carro. Alguns pesam pelos anos,outros pela gratidão que lhes devo. Sem eles não seria nada. Aliás, não sei se sou alguma coisa. Lembra-me o diálogo de Sócrates, o grego, quando diz: “Só sei que nada sei”. E o outro lhe responde: “Eu nem sequer sei isso”.
Na vila, onde até as próprias ruas adormecem por falta de movimento, algum novo e rasca riquismo risca a paisagem, com o meteoro da palavra inflamada pelo euro.
Conhecemo-los no discorrer do tempo.
Ninguém lhes proporia um futuro feito de truques, malvadezas e deslealdades. A outros, ninguém, quando a juventude é tão egoísta quanto generosa, seria capaz de assinar tamanha transformação, trocado um saco de ilusões e utopias por um suculento prato de lentilhas.
E quem me diz que não tiveram razão quando se traíram a eles mesmo antes de traírem os outros?
Regresso a casa. De quando em quando regresso a casa. Recolho o livro, selecciono os papéis e revejo as palavras como a imagem de uma adolescência angustiada, como se o futuro não estivesse à beira.
Mas o Tempo é como uma miragem. Incita-nos à ilusão e provoca-nos à ruptura, estabelecidos no vazio que julgamos o princípio da plenitude.
Recolho os livros, arrumo os papéis velhos numa velha mala. Não sei quando será aberta e se os papéis poderão respirar a luz.
Sei que me sinto mais seguro com eles ao lado.



A "SANTA" INQUISIÇÃO EM MONCORVO - I

NA RUA DOS SAPATEIROS EM 1599.

Caíram sobre ele às estocadas mesmo à porta se sua casa, sita ao fundo da rua dos Sapateiros, na vila de Torre de Moncorvo. Eram três contra um e, embora valente e destemido, nada mais pôde fazer do que aparar com a espada as primeiras estocadas e rapidamente meter-se em casa cuja porta a mulher lhe abrira e ainda mais depressa fechou, atrás dele. Da mão esquerda escorria sangue, que lhe abriram um lenho bem fundo e no chão da rua ficou o dedo mindinho, que lho cortaram com uma espadeirada. Antes de prosseguirmos, convirá que apresentemos os contendores:

De um lado, Manuel Rodrigues Isidro, 24 anos, cristão-novo, comerciante e rendeiro, certamente o homem mais endinheirado da terra, um exportador e importador que anualmente pagava mais de 100 mil reis de impostos alfandegários e contava com a protecção de D. Francisca de Aragão, uma das damas de mais consideradas e influentes na Corte de Madrid.

Contra ele, Francisco da Rosa Pinto, juiz dos órfãos, um cargo muito importante e dos mais rendosos da vila; Álvaro Falcão, escrivão do público, e Diogo Monteiro, homem nobre, meirinho do eclesiástico, a autoridade fiscalizadora do cumprimento das leis da igreja e dos deveres públicos dos cristãos, na área do vicariato de Torre de Moncorvo, que abrangia vários concelhos em redor.

Metidos em casa, os Isidros trataram logo de trancar portas e janelas, que os inimigos eram homens de muito poder e prepotentes, capazes até de arrombar paredes. Além do mais, não convinha afrontá-los directamente

Em sua casas se fecharam também, de repente, a maioria dos moradores da rua dos Sapateiros, que quase todos eram “gente da nação” e aquilo podia ser o início de alguma “guerra” entre as comunidades cristã-nova e cristã velha.

A notícia correu logo pela vila e, da casa de Jerónimo de Castro, sita ao fundo da rua dos Sapateiros, por baixo da porta de S. Bartolomeu, saiu pouco depois um magote de gente, pessoas impantes de nobreza e aristocracia, da primeira do concelho, “todos armados de espadas, redelas e cascos e ouras de antas e chuços” e foram juntar-se àqueles três intrépidos “vingadores” e a outros mais que entretanto haviam chegado, em “assuada” à casa de Manuel Isidro, tentando “abalroar” as portas, metendo as espadas pelas vigias, gritando nomes de “cabrão, peero e judeu” e desafiando para que saísse, que haviam de matá-lo.

Da turba enfurecida e para além dos três já apresentados, destacavam-se os seguintes:Ambrósio da Rocha Pinto, pai do juiz dos órfãos.Pascoal Camelo, padre, familiar do Santo Ofício.

António Camelo, sobrinho daquele, homem nobre e que então empunhava a vara de meirinho, o magistrado judicial mais importante da terra e a quem competia manter a ordem pública e executar as prisões.

Jerónimo de Castro, escrivão da câmara municipal, de certo o emprego mais cobiçado da administração em qualquer concelho.

Tomé de Castro, seu filho, chanceler da correição, espécie de secretário provincial a quem pertencia a escrituração das leis e despachos do corregedor e acompanhar a sua execução nos mais de 20 concelhos que integravam a comarca.

Do que mais se passou naquele dia 17 de Maio de 1599 em volta da casa de Manuel Rodrigues Isidro na rua dos Sapateiros, nada mais sabemos. Mas, se o confronto acabou com o corte de “metade da sua mão” esquerda, a verdade é que Manuel Isidro apresentou queixa na Corte de Madrid, a qual ordenou a execução de uma devassa que foi conduzida pelo dr. António Cabral, da Relação do Porto. E em resultado da mesma, foram metidos na cadeia o juiz Francisco da Rosa Pinto, Diogo Monteiro, Bartolomeu de Castro e Pascoal Camelo, enquanto alguns outros abandonavam a vila e se internavam na terra de coutada de Miranda do Douro.

Não pensem, porém, que as coisas ficariam por ali, que um “judeu”, mesmo que protegido pela Corte de Madrid, passava impunemente por cima de gente assim cotada da nobreza Moncorvense. Era mais que certo um ajustar de contas com aquele homem e seus familiares, todos muito favorecidos de dinheiro e honrarias. E o palco escolhido não seria já a rua dos Sapateiros, em Torre de Moncorvo, mas um outro, bem mais grandioso e bem armadilhado – o do tribunal da Inquisição.

Recordam-se os leitores que Diogo Monteiro, um dos que então foram presos, era meirinho do eclesiástico? De certo, pouco tempo estaria atrás das grades e, logo que solto, não sabemos sob qual pretexto, em Julho seguinte, meteu na cadeia da comarca o Manuel Isidro, sem culpa formada, mas tão só com o propósito de o picar, esperando que ele reagisse e, por qualquer via, faltar ao respeito à autoridade. Parece que chegou mesmo a arrastá-lo pelo chão da cadeia. Porém, Manuel Isidro vestiu-se de paciência e tudo suportou, preferindo guardar suas queixas para apresentar depois ao corregedor da comarca.

Texto da autoria de António Júlio Andrade.
Imagens do edificio da Inquisição em Moncorvo e de um auto-de-fé em Lisboa.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Jornada micológica em Torre de Moncorvo

Realiza-se no próximo dia 7 de Novembro (sábado), uma jornada micológica (de colecta e estudo de cogumelos), organizada pelo PARM, no âmbito das actividades do Museu do Ferro & da Região de Moncorvo. A actividade principia pelas 10;00h, com a concentração dos participantes no largo do Museu, de onde se seguirá a caminhada em direcção à serra do Roborêdo, pelo caminho da casa florestal (antigo caminho medieval que ia de Torre de Moncorvo para Mós, Freixo de Espada à Cinta, etc.). No terreno (pinhais à beira do caminho) será feita uma colecta selectiva de alguns cogumelos para se classificarem e analisarem na sessão que terá lugar da parte da tarde. A colecta a realizar deverá ser feita de acordo com o Código de Conduta do Apanhador de Cogumelos, que será distribuído aos participantes.
Da parte da tarde terá lugar uma palestra sobre o vasto mundo dos cogumelos, pelo Engº. Afonso Calheiros e Menezes (engenheiro florestal, técnico superior do PNDI e presidente da Direcção do PARM). Nesta sessão será feita a seriação e classificação das espécies recolhidas na acção de campo, com orientação do Engº. Afonso e recurso a bibliografia especializada.

Nota: Para melhor coordenação, os organizadores pedem a todos os interessados que se inscrevam até às 17;00horas do dia 6 de Novembro, através do nº. 279252724.
A inscrição é gratuita.
Ver mais: http://parm-moncorvo.blogspot.com/2009/11/ii-jornada-micologica-em-torre-de.html

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O Chacim - um poema de Campos Monteiro

E para fecharmos o assunto, algo funéreo, do "post" anterior, não resistimos a deixar aqui um belo poema que é um misto de evocação, veneração e saudade do nosso poeta Campos Monteiro, em relação a um velho amigo de Moncorvo, que entretanto falecera:

O CHACIM

Entre os velhos que esconde a sepultura,
um me recorda agora. Era o Chacim,
alma cheia de paz e ternura,
que tinha imensa adoração por mim.

Domingos de manhã, no Lageado(1),
era certo, passeando, satisfeito.
E ao ver-me aparecer -alvoroçado
vinha apertar-me contra o largo peito.

- "Então por cá!?... Um pouco macilento...
É de escrever... Comédias p'ra o teatro...
versos... artigos... o diabo a quatro!" -
E aos outros, baixo: - "Aquilo é que é talento!" -

-"Cá tenho visto nos jornais. Pois não!
Eu leio tudo quanto o amigo escreve!"
E a sua longa barba côr de neve
tremia de entusiasmo e de emoção.

- "Isto dá glória à terra! É uma vergonha
que a vila em que nasceu não retribua!
Hei-de propôr à Câmara que ponha
o seu nome na esquina de uma rua!" -

Eu protestava. Mas o sino à missa
chamava os crentes... E estendendo a mão:
- "Não se faça modesto, que é justiça!
Deve-lhe a vila esta consagração!" -

Passaram anos. Muito tempo estive
sem vir aos montes que eu adoro tanto.
Chego, e indago: - O Chacim? ainda vive? -
- "Mudou de casa, para o Campo Santo!" -

Parti de novo. E o tempo, decorrendo,
- como a neve às pegadas de um pastor -
foi na minha memória dissolvendo
a imagem do meu velho admirador.

Enfim, um livro publiquei. Só este...
Primeiro e derradeiro, é bem de ver.

- Meu pobre amigo! para que morreste?
Quanta alegria, se o pudesses ler!

Campos Monteiro, Versos fora de Moda (capº. Cartas da Minha Terra), 1ª. ed. - 1915.

(1) O "Lageado" era no adro da igreja matriz [nota do postador]

domingo, 1 de novembro de 2009

Cemitério de Moncorvo em dia de finados

Portão da entrada principal do cemitério de Torre de Moncorvo, ladeada por velhos ciprestes
«O Dia dos Fiéis Defuntos, Dia dos Mortos ou Dia de Finados é celebrado pela Igreja Católica no dia 2 de Novembro, logo a seguir ao dia de Todos-os-Santos.
Desde o século II, alguns cristãos rezavam pelos falecidos, visitando os túmulos dos mártires para rezar pelos que morreram. No século V, a Igreja dedicava um dia do ano para rezar por todos os mortos, pelos quais ninguém rezava e dos quais ninguém lembrava. Também o abade de Cluny, santo Odilon, em 998 pedia aos monges que orassem pelos mortos. Desde o século XI os Papas Silvestre II (1009), João XVII (1009) e Leão IX (1015) obrigam a comunidade a dedicar um dia aos mortos. No século XIII esse dia anual passa a ser comemorado em 2 de novembro, porque 1 de novembro é a Festa de Todos os Santos. A doutrina católica evoca algumas passagens bíblicas para fundamentar sua posição (cf. Tobias 12,12; 1,18-20; Mt 12,32 e II Macabeus 12,43-46), e se apóia em uma prática de quase dois mil anos.» - Fonte: Wikipédia.
Um belo monumento dedicado à memória de uma jovem moncorvense, por seu padrinho Alexandre Ferreira de Carvalho, em Janeiro de 1880

Outrora os enterramentos faziam-se no interior das igrejas e nos adros das mesmas. Esta prática, em Portugal (e, consequentemente, em Torre de Moncorvo) vinha desde a Idade Média. Com a implantação do Estado Liberal, motivações ideológicas e sanitárias levaram à constituição de locais próprios para os enterramentos dos cadáveres humanos: os cemitérios. Em Portugal, isso vinha sendo tentado desde 1835, culminando num decreto do governo cabralista de 28.09.1844, o qual viria a gerar, em regiões mais conservadoras, como o Entre-Douro-e-Minho, múltiplas resistências por parte da população. Ficou célebre o episódio da revolta da Maria da Fonte, que, para além de causas mais profundas, teve como rastilho uma situação de uma tentativa de enterramento numa igreja (em Fonte Arcada), o qual foi impedido pelas autoridades.
Plataforma inferior do cemitério de Torre de Moncorvo, sombreada por cupressos

Como forma de amenizar esta resistência popular e atenuar o impacto psicológico de enterramentos que não fossem em igrejas, procuraram-se lugares que fossem já tradicionalmente "campos santos", ou seja, que fossem assinalados por alguma capela ou igreja antiga, isto quando não era possível constituir-se o cemitério mesmo ao lado da igreja, como se vê em muitas da aldeias do nosso concelho e concelhos vizinhos.
No caso da vila de Torre de Moncorvo, o novo cemitério acabaria por se fazer no local da capela de Santo Cristo (antiga igreja de Santiago), a qual viria a ser sacrificada já nos finais do séc. XIX por um alargamento do dito cemitério, para o lado nascente. O belo portão da entrada, em ferro forjado e fundido, ostenta a data de 1869, mas a determinação para os enterramentos se realizarem neste espaço deve ser anterior.
Capa do Regulamento do Cemitério Municipal de T. de Moncorvo, 1880

Em todo o caso, só em 1886 é que foi impresso, na Imprensa Académica de Coimbra, o Regulamento do cemitério municipal de Moncorvo, aprovado em sessão de Câmara de 10 de Abril de 1886, sendo assinado por Augusto Duarte Areosa, António Marcelino Durão, Joaquim António da Silva, Marcolino Márcio Ferreira Margarido, Manuel Joaquim Diniz Pontes. O dito regulamento foi posteriormente aprovado em sessão da comissão executiva realizada em Bragança, a 20 de Agosto do mesmo ano, com assinaturas de José António Pereira de Almeida e José Henriques Pinheiro. Este último era natural de Moncorvo, sendo professor no liceu de Bragança e arqueólogo notável.
Lê-se na abertura deste Regulamento do Cemitério Municipal de Torre de Moncorvo, no capítulo I, artº 1º: "O cemitério de Moncorvo, situado ao S. Christo, é destinado especialmente para os enterramentos dos finados nas freguesias da villa". No entanto, em parágrafo único dizia-se ainda que "Nelle poderão também ser enterrados os cadaveres de pessoas fallecidas noutras freguesias do concelho onde não haja cemitério". Quanto ao pessoal, especifica o artº. 2º: "O pessoal do cemiterio compõe-se de um capellão, um administrador, um guarda, um coveiro e dos trabalhadores que a Camara julgar necessarios". O artº. 3º. diz que "O capellão e o administrador estão immediatamente subordinados á inspecção do vereador de respectivo pelouro, e o pessoal restante á do administrador". Os capítulos seguintes (II a V) refere-se às atribuições e obrigações do pessoal; o capº. VI é sobre as Inumações, o VII sobre os jazigos, o VIII sobre as exumações, terminando com Disposições Gerais, no capº. IX, e ainda uma tabela de vencimentos dos empregados, dos emolumentos da capela, valores de inumações e de exumações.
Custava, nesses tempos, um enterramento em jazigo municipal de depósito perpétuo, a elevada quantia de 50$000 (5o mil réis); se fosse por 2 anos, eram 10$000 (dez mil réis), e até 3 meses, 1$500 (mil e quinhentos), sendo de estranhar que houvesse inumações apenas por 3 meses, que leva a crer que as solicitações, em termos de espaço, seriam muitas. Estes valores eram iguais para jazigos particulares. Já as sepulturas razas eram mais baratas: "sepultura raza para finado maior de 7 anos, sem caixão: 500 réis; idem, com caixão: 800 réis; (...) sepultura raza para menor de 7 anos, sem caixão: 200 réis; idem, idem, com caixão: 400 rs. (...) Vala geral para maior de 7 anos: 300 rs.; idem, para menor de 7 anos: 100 rs." - Tinham sepultura gratuita, conforme o artº. 13, os finados nos hospitais e os que ali tivessem tratamento gratuito; os finados nas misericórdias, asilos e cadeias, quando nas guias que os acompanhassem se declarasse a sua pobreza; do mesmo beneficiavam os finados no domicílio, desde que acompanhados de atestado de pobreza, passado pelo respectivo pároco ou pelo sub-delegado de saúde".
O Regulamento tem ainda outras curiosidades, como a de não se poderem plantar, dentro do cemitério, quaisquer árvores de fruto ou outro vegetal que pudesse servir de alimento, ou ainda quanto ao impedimento de entrada de cães e outros animais.
È um documento que vale a pena ler, nesta ocasião, em que a tradição nos obriga à visita dos nossos entes queridos já falecidos.
Como dizia há dias, em programa radiofónico, a Drª. Clara Saraiva, profª. da Univ. Nova de Lisboa, e especialista nesta temática das atitutes e representações humanas quanto à morte, nos tempos que correm e na civilização ocidental, a Morte tornou-se um tabu e uma "coisa feia", algo de que desviamos a cara, de que evitamos falar, ou que procuramos "enfeitar" (como na tradição recente norte-americana). No entanto, ao lermos a magistral obra de Phillipe Ariès, O Homem perante a Morte (ed. Europa-América), vemos que nem sempre foi assim. Na Idade Média as pessoas frequentavam alegremente os locais de enterramento, junto das igrejas, aí fazendo festas e feiras, comendo e até dançando, junto dos seus mortos. Coisas que não nos passariam hoje pela cabeça, mas nada perderíamos se visitássemos com mais regularidade estes espaços, sobretudo para termos a noção da nossa finitude, e de como nada vale sermos tão ambiciosos e desrespeitadores do nosso semelhante. Tudo acaba ali.

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