Ó montes que cercais a vila de Moncorvo,
Ó pinhos cujo odor continuamente eu sorvo,
Ó águas que a cantar passais a nossa vida,
Ó pobres camponeses sempre a trabalhar,
E vós carros de bois pela estrada a chiar,
E tu ó negra fome em todos os lares erguida,
Entoai-me uma canção que me faça chorar,
Que à vida nem eu sei que rumo hei-de já dar …
Gemei eternos montes, sempre adormecidos,
Ó pinhos abaixai vossos ramos erguidos
E vós águas das fontes chorai eternamente …
Camponeses, parai, de trabalhar, parai….
Chiai, carros de bois; Gemei, chiai, chiai …
E tu ó negra fome extermina-os sempre!...
Revolvei-vos montanha! Meu fim não tardará
Que o que me vai na alma não tem remédio já…
Vejo tulipas brancas estremecer de dor
Nesta terra maldita onde não há amor
Onde os homens se batem sabe-se lá porquê?
E onde os animais se comem uns aos outros,
E onde há tolos tantos e espertos tão poucos …
Onde do que era bom nem átomo se vê!
Eu que sou diferente de todos, que fazer?
O vácuo, o nada, o nada! Morrer, morrer, morrer!
30/VIII/1945
Poema: J. Lopes
Foto: Tomás Menezes
3 comentários:
Atentem na data deste poema, cujo Autor julgo não conhecer- um sombrio pós-guerra, um mundo de privações, de isolamento, de fomes e de medos. Uma geração sofrida, uma dignidade contida, um mundo em mudança cujos ecos aqui não chegavam. Esta geração que gerou a revolta.
É este o retrato deste inquietante poema.
Daniel
Antes de mais, gostava de saudar o "Sarilhos" por esta sua estreia, bem como o Daniel de Sousa, ao vê-lo já no rol dos colaboradores! - da minha parte, Bem-vindos!
Quanto ao poema é, de facto, sombrio e feito de contrastes. Principia bucólico, adquire deppois uma toada de António Nobre (na parte "Entoai-me uma canção que me faça chorar", lembra aquele: "Oh virgens que passais ao sol Poente,/ pelas estradas ermas a cantar /entoai-me uma canção ardente / que me transporte ao meu perdido lar" - cito de memória, mas acho que é isto) e termina num quási pitctórico grito de Munch, carregado de nihilismo. Que tivesse sido escrito em Torre de Moncorvo imediatamente a seguir à II Grande Guerra é sintomático e revela que, até certo ponto, chegavam cá os ecos, senão de uma mudança, pelo menos de um estado de espírito. Mas é preciso atentar que o ignoto autor não escreve terra com maiúscula, pelo que se poderá estar antes a referir a uma realidade mais comezinha e local... "Mutatis mutandis..."
Obrigado, Sarilhos.
n.
Reparei na data , sim . Sem dúvida, o poema é inquietante ! É um poema com tempo e lugar.
E, demasiado bem, eu conheci esse mundo: tantas vezes, demasiadas vezes, estive - criança de 6 ou 7 anos - horas, demasiadas horas, em pé, na bicha do pão para, com a senha de racionamento, obter 250 gramas de pão para 3 pessoas.. Pão mal cozido, para pesar mais.
Para os mais pobres a penúria era total, ainda que no mercado negro nada faltasse...
E continuamos num mundo de tremendas contradições e desigualdades.
Desejo para os meus filhos e netos e para todas as crianças e jovens um mundo melhor.
Júlia
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